Texto de Rubem Alves... para refletir.
Fui
convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram
supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no
assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar
para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico.
Comecei o
meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista,
tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são
alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein,
Cecília Meireles, Maiakovski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco.
Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se. Wittgenstein alegrou-se
ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia.
Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakoviski
suicidou-se.
Essas
eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito
depois de nós termos sido completamente esquecidos. Mas será que tinham saúde
mental? Saúde mental, essa condição em que as idéias comportam-se bem, sempre
iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as
coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o
corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado; nem é preciso dar uma volta
ao mundo num barco a vela, bastar fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda
não viu, veja o filme) ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso,
a coragem de pensar o que nunca pensou.
Pensar é
uma coisa muito perigosa... Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas
demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de
gravata. Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde
mental. Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes
psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego numa empresa.
Por outro lado, nunca ouvi falar de político que tivesse estresse ou depressão.
Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e
certezas.
Sinto que
meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos
devidos esclarecimentos. Nós somos muito parecidos com computadores. O
funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação de
duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento
duro", e a outra denomina-se software, "equipamento macio". O
hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito.
O
software é constituído por entidades "espirituais" - símbolos que
formam os programas e são gravados nos disquetes.
Nós
também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos do cérebro, os
neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído
por uma série de programas que ficam gravados na memória. Do mesmo jeito como
nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas,
dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o programa mais importante é
a linguagem.
Um
computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no
software. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar
psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis
consertar o que se estragou. Quando o problema está no software, entretanto,
poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de
fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar
dentro dele.
Assim,
para se lidar com o software há que se fazer uso dos símbolos. Por isso, quem
trata das perturbações do software humano nunca se vale de recursos físicos
para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas, humoristas,
palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo psicanalistas.
Acontece,
entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que
o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é sensível às coisas que o
seu software produz. Pois não é isso que acontece conosco? Ouvimos uma música e
choramos. Lemos os poemas eróticos de Drummond e o corpo fica excitado. Imagine
um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e os acessórios, o hardware,
tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover. Imagine mais,
que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e se arrebenta de
emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio:
a música que saía de seu software era tão bonita que seu hardware não suportou.
Dados
esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer uma receita
que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, saúde mental até o fim dos seus
dias. Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e comoventes. A
beleza é perigosa para o hardware. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são
especialmente contra-indicados. Já o rock pode ser tomado à vontade.
Quanto às
leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada
em impedir o pensamento. Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por que se
arriscar a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos
diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e
caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas
iguais. E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu Liberato.
Seguindo
essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal. Mas como você cultivou
a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, em vez de ter o
fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se aposentará para, então,
realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento,
você já terá se esquecido de como eles eram.